A arte de tecer a vida

Só pelo nome, “Os Fios da Fortuna”, eu não compraria o livro. É que parece mais um título de auto-ajuda, do tipo “como enriquecer de maneira fácil”. Não que eu ache que auto-ajuda não sirva para nada. Apenas creio ser possível resumir em uma frase o que está escrito em Segredos e Coelhos: acredite em você, mantenha o pensamento positivo, vá à luta e tudo dará certo. No entanto, numa era de desalentos, acaba havendo espaço para que essa idéia seja trabalhada de um jeito mais rebuscado.

Voltando a “Os Fios da Fortuna”. Interessei-me pelo livro ao ver que se tratava de um romance, com respaldo histórico, sobre uma garota do Irã da década de 1620. A autora, Anita Amirrezvani, é nascida em Teerã, no Irã, e criada em São Francisco, Califórnia, EUA. Pesquisou durante nove anos para escrever esse livro e divulgar parte da cultura de seu país de origem. Fala sobre um mundo muçulmano que desperta, simultaneamente, curiosidade e repulsa, pela submissão destinada à mulher escondida por trás de véus e xadors.

A protagonista tem um talento especial, o dom para a tapeçaria. Se ela fosse um homem, teria tudo para fazer fortuna. Mesmo com todas as dificuldades impostas a uma mulher sem pai e sem marido -- num contexto em que não há possibilidade de sustento para alguém do sexo feminino sem a proteção de um homem -- , ela consegue traçar a sua vida e, surpreendentemente, a sua independência, num movimento semelhante à tecitura de um tapete digno da mais exuberante arte persa, não sem passar por diversas provações.

A personagem não tem um nome. A autora deixou-a anônima em homenagem a tantos artesãos desconhecidos. Dos percalços por que passou, um ponto crítico se refere à consumação de um sigheh -- nome dado a um contrato de casamento por tempo determinado, no caso, de três meses, renováveis, sucessivamente, por mais três.

O sigheh foi o que mais me tocou nesse livro. Sabia que os muçulmanos podiam ter várias esposas vitalícias, desde que as sustentem, mas desconhecia que também podiam oficializar casamentos provisórios. A lei e a fé legitimam o concubinato e dispensam o compromisso. Se a amante não agradar, é descartada sem qualquer ônus.

Apesar de a obra ser fictícia, o sigheh é real e legítimo até os dias de hoje naquela região. Podemos, por isso, deduzir que nossa cultura ocidental é superior? Não é assim tão simples. O capitalismo também abriga tantos descompromissos, dos empregos sem registro aos relacionamentos descartáveis que geram filhos não planejados e jogados na vida.

Gosto de ter nascido no mundo ocidental. Mas, mesmo aqui, é preciso ser guerreira como a personagem sem nome de “Os Fios da Fortuna”. Já que nenhuma cultura é completa e totalmente perfeita, vale a tentativa de buscar o melhor de cada uma delas. Então, nada mal, no âmbito acadêmico, estudar de maneira crítica os discursos sobre a mulher e, complementarmente, apreciar e praticar a dança árabe, encarada como valorização da feminilidade. A coerência de nossas vidas também pode ser tecida como os nós de um tapete persa.

Postado no meu blog do UOL em: 22/01/2008

Comentários

  1. Comentários recebidos:

    [Mariana] [magasri@hotmail.com]
    Adorei a dica Érika! Vou procurar pra ler... Não sei se vc já leu, mas o livro "A cidade do Sol" (Khaled Hosseini, mesmo autor de Caçador de Pipas - a lias adorei tb) fala sobre o dilema de 2 mulheres no Afeganistão que sofreram o diabo com as tradições opressivas em busca de uma luzinha no final do tunel... vale a pena ler tb. Bjos!
    28/02/2008 23:03

    [Ká Valentin] [kvalentin@terra.com.br]
    Érika, que lindo! nossa, amei!!!! xi, daqui a pouco terei que pagar direitos autorais, pq quero divulgar todos os seus textos pra todo mundo, rs! me diga se posso , e qual o seu cachê... rs bjos! Ká
    21/02/2008 18:21
    OBSERVAÇÃO: Comentário da professora de Dança do Ventre enviado por e-mail.

    [Ronaldo Schiavone] [ronaldoschiavone@hotmail.com]
    Parabéns pelo blog e que ele possa se tornar um espaço para a divulgação de toda a sua produção, que é bem ampla. Beijos!
    26/01/2008 17:57

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