Flexionar ou não, eis a questão

Este é um ponto que costuma gerar dúvidas na hora da escrita: deve-se ou não flexionar um verbo no infinitivo? Não é em vão que essa dúvida é tão comum. Veja o que diz a gramática de Cunha e Cintra:

O emprego das formas flexionada e não flexionada do INFINITIVO é uma das questões mais controvertidas da sintaxe portuguesa. [...] Por tudo isso, parece-nos mais acertado falar não de regras, mas de tendências que se observam no emprego de uma e de outra forma no INFINITIVO. (Cunha e Cintra, p. 499)

Os autores apresentam as tendências e, ao final, concluem:

Trata-se, pois, de um emprego seletivo, mais do terreno da estilística do que, propriamente, da gramática. (Cunha e Cintra, p. 504)

Dificilmente haverá, portanto, uma resposta definitiva, em termos de certo ou errado, para a flexão (ou não) do infinitivo. O que não impede que, caso a caso, determinada forma soe melhor por questões de estilo. [P.S. Tampouco a visão que opõe gramática e estilística é definitiva! Ver observação do Prof. Sírio Possenti nos comentários deste post.]

Minha experiência como professora, corretora de vestibulares e revisora mostra que há uma tendência de quem escreve a flexionar o infinitivo, o que nem sempre implica a melhor solução textual. Tal tendência, parece-me, explica-se pelo fato de que a forma não flexionada, às vezes, pode causar a impressão (equivocada) de “erro de concordância”, provocando uma espécie de hipercorreção.

O leitor pode recorrer à gramática para obter orientações, embora não definitivas. No intuito de contribuir com a discussão, trago, abaixo, alguns exemplos da grande impressa (todos da Editora Abril) que revelam uma tendência pela forma não flexionada. Digo tendência, pois, na maioria dos casos, não é possível afirmar que a forma flexionada estaria “errada”. Vejamos:

1.
“Eu mesma, do alto dos meus tantos anos e duras lidas, não consigo resolver ou superar alguns de meus problemas nem ajudar pessoas que amo a se livrar de todos os seus.”
[Veja, 7/11/2007, Ed. 2033, texto: “Paisagem com problemas”, de Lya Luft, p. 26]

2. “Esse hábito desacostuma os bichos a exercer suas habilidades para conseguir o alimento, já que comer o que o humano oferece não exige esforço.”
(Por que não podemos dar comida aos bichos na natureza. Superinteressante ed. 247, 15/12/07, p. 41)

3.
“... eu me convenci de que o maior desafio do movimento ecológico hoje não é somente estimular as pessoas a abandonar as revistas ou então a concordar em recebê-las amassadas por não terem sido embaladas.” {Note que o verbo ter aparece flexionado, dada a proximidade com o complemento embaladas. Mas abandonar e concordar aparecem não flexionados, embora possam concordar com pessoas. Opção estilística.}
(Sérgio Gwercman, Superinteressante ed. 247, 15/12/07)

4.
“Eles acusam os religiosos de aproveitar a lacuna do conhecimento humano para preenchê-la com o pensamento mágico.” (Veja ed. 2040, ano 40, n.º 51, 26/12/07, p. 80)

5.
“(...) que não fizesse as crianças se revirar nas cadeiras do cinema” (Veja ed. 2040, ano 40, n.º 51, 26/12/07, Isabela Boscov, p. 117)

Os dados mostram que a preferência pela forma não flexionada – que pode soar estranha para alguns – é uma opção bem clara dessa empresa de comunicação. Fica o registro.

P.S. Os exemplos continuam:
6. “Se for caminhar muito, opte por modelos com alça transversal, que distribuem melhor o peso – e são ótimos, inclusive, para bater perna no shopping, já que liberam os ombros e as mãos para carregar as compras.” (Veja Mulher especial, Maio de 2008, p.48)

7. “Adiar o primeiro filho é uma tendência mundial, estimulada pelas aspirações profissionais e propiciada pela medicina, que hoje dá a mulher transbordando os 40 anos a oportunidade de se tornar mães.” (Veja Mulher especial, Maio de 2008, p.55)

Postado no meu blog do UOL em: 07/03/2008

Comentários

  1. Comentários recebidos:

    [Serjones] [biscaldi@terra.com.br] [www.coracao-envenenado.blogspot.com]
    Como redator publicitário e revisor, tb enfrento este problema. Não tanto quanto escrevo, mas qdo chegam a mim textos de outras pessoas. É uma questão mto complicada mesmo!
    08/03/2008 23:05

    [Sírio Possenti] [siriop@terra.com.br]
    Estou gostando muito de ler seu blog. Uma observação: não acho que se possa opor gramática e estilísitca, como fazem Cunha e Cintra, a não ser que se entenda que gramática significa apenas gramática normativa. Ou seja: há (deve haver) uma descrição gramatical para as formas estilisticamente "preferidas".
    08/03/2008 18:05

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