Pra ser sincera...

“... eu não espero de você mais do que educação; beijo sem paixão; crime sem castigo, aperto de mãos”(Engenheiros do Hawaii, composição de Humberto Gessinger e Augusto Licks)

Às vezes, ao falar ou escrever, quando me vem o ímpeto de usar a expressão “pra ser sincera”, lembro-me de um comentário que faz pairar um fantasma.
Walter Longo, conselheiro de Roberto Justus no programa O Aprendiz, da Record (acho que foi em O Aprendiz 5 – O sócio) criticou um dos candidatos demitidos na temida sala de reunião devido ao uso da expressão “sendo sincero” ou variantes como “posso ser sincero?”. O conselheiro disse algo mais ou menos como: “olha, quando você diz isso, dá impressão que não está sendo sincero nos outros momentos”.
Crítica justa? Não sei. Não me lembro do contexto todo, tampouco sei que grau de credibilidade o candidato em questão (de cujo nome também não me lembro) inspirava. Evidentemente, critérios subjetivos fazem parte da avaliação sobre se uma pessoa é verdadeira, autêntica, etc. Trata-se também de uma questão de ethos: a imagem que se constrói de si, podendo ou não corresponder à realidade.
Mas o que me intrigou, desde que ouvi tal comentário, foi o seguinte: a acusação tem uma força de verdade respaldada na lógica: se, às vezes, preciso dizer que sou sincera, logo é possível (provável?) que, outras vezes, eu não esteja sendo (tão) sincera. Discordo, mas é aparentemente difícil contrapor um argumento “lógico”, não é?
Pois bem. Os estudos de Análise do Discurso (linha francesa) levaram à constatação de que os sentidos não estão nas palavras, não se originam nelas, mas se constroem conforme postos em circulação. Assim, uma palavra ou expressão pode significar coisas muito diferentes, dadas as variadas circunstâncias.
O que isso tem a ver com a sinceridade? Uma expressão como “pra ser sincero”, nas circunstâncias em que é utilizada, não costuma significar “neste momento, estou sendo o contrário de falso”. Essa interpretação só funcionaria se as línguas permitissem, apenas, um suposto sentido literal. Ocorre que o uso enfático de “ser sincero” parece significar muito menos “não ser falso” do que “ser enfaticamente sincero”, menos político ou diplomático, mais realista. Em tempos em que se cobram atitudes politicamente corretas, muitas vezes, ser autêntico (demais) é um problema.
Quem encara ser “bem sincero” o tempo todo, no dia-a-dia? As relações sobreviveriam? Nesse sentido, o “ser sincero” se torna algo mais raro, mas não significa que o “ser falso” seja o estado “normal” das coisas. Trata-se de uma forma de enfatizar: “estou abrindo mão se ser politicamente correto, diplomático, ainda que eu seja criticado por isso”.
É claro, se o “ser sincero” entra com exagero na fala de alguém (pode ter sido o caso do tal participante repreendido na sala de reunião do Roberto Justus), torna-se um cacoete.
Espero que o exemplo sirva de estímulo para, sempre que necessário, duvidarmos da aparente facilidade da lógica. Ou, pelo menos, suspeitarmos de que a realidade pode ser muito mais complexa. Procure a palavra “sincero” no dicionário, verá que sua definição não dá conta de todos os problemas que ela coloca.

Érika de Moraes
Doutora em Linguística pelo IEL/Unicamp

Postado no meu blog do UOL em: 11/01/09

Comentários

  1. Comentários recebidos:

    [Sue Ellen ] [sueellen.cruz@gmail.com] [sueellencruz.blogspot.com]
    Por isso que eu adoro a Analise do Discurso!!!! =)
    19/01/2009 13:56

    [Danilo B] [danilo_bressan@hotmail.com] [http://danilobressan.blogspot.com/]
    Querida, esqueci de linkar seu blog no meu. Sorry! Vou linkar e editar o post dos amigos que trabalham comigo. :D Beijos
    16/01/2009 19:51

    [Rody] [rodrigo22oliveira@yahoo.com]
    Taí uma verdade! rs.
    12/01/2009 18:28

    ResponderExcluir

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