Vamos salvar a língua

Republicando... (do primeiro Liquimix)


No princípio, Deus criou Adão, Eva e um livro de gramática. E a língua que se falava era perfeita, como tudo no Paraíso. Até que a população do mundo foi crescendo e surgiu o povo que começou a “falar tudo errado” e a estragar a língua. Mas vieram também os guardiões do idioma verdadeiro, responsáveis por preservá-lo, lutando contra formas abomináveis como “menas” (o editor do word teima em corrigir para “menos”).

Não, caro leitor, essa não é minha posição. Assim como Darwin elaborou uma teoria científica sobre a evolução humana (que não transforma o Gênesis necessariamente numa mentira, mas talvez numa metáfora), a Lingüística se dedica a estudar a língua de maneira científica, por assim dizer. E, para isso, rompe com o tratamento normativo, que estabelece regras tais quais as de etiqueta, e dirige um outro olhar para a linguagem, procurando descrever fenômenos, sem tachá-los como certos ou errados.

O exemplo do “menas” é ilustrativo. Um purista dirá que a forma não existe, que o correto é “menos”, que falar de outro jeito é fazer um mal danado para a língua, coitada. Não, um lingüista não dirá o oposto, que falar “menas” é fazer bem para a língua, simplesmente procurará entender o que acontece. Provavelmente, as pessoas que falam “menas” o fazem por um raciocínio espontâneo (sim, raciocínio, e não falta dele): não sabem que “menos” é advérbio, portanto invariável, então, “entendem” a palavra como um adjetivo. Assim, fazem a concordância com o substantivo: “menas pessoas”. É mais ou menos como o raciocínio inteligente (e não burro) de uma criança que diz “eu fazi”. Ela ainda não sabe que a língua padrão é cheia de exceções e pensa de maneira associativa: eu comi, eu parti, eu fazi (obs. criança não aprende só por repetição!). Cabe a um adulto escolarizado apresentar à criança as exceções.

Não estou fazendo apologia da forma “menas”. Educadores, obviamente, devem ensinar a norma padrão da língua, pois é esse conhecimento, por razões socioculturais, que proporciona prestígio e abre oportunidades. A proposta da Lingüística é romper com o preconceito, ao esclarecer que não há português “errado”, existe português padrão e não-padrão. E, do ponto de vista lingüístico (ou científico) nada faz com que uma forma seja “melhor” do que a outra. Uma delas simplesmente foi escolhida como “oficial” (regras ortográficas, por exemplo, são instituídas por lei). E a padronização é necessária por razões de ordem prática. Mas dizer que uma palavra como “menas” não existe é grande balela. Existe tanto quanto a pobreza nas ruas que, para muitos, “estraga” a beleza das cidades. E, se está errada, só está errada segundo um padrão. Se é feia, é feia segundo um juízo de valor. Mas não é naturalmente errada ou feia.

Um dia, pode até ser que seja considerada certa – prevejo alguns leitores de cabelo em pé. Nossos avós também podem achar um absurdo que não se escreva mais farmácia com ph. Por que o português teria que parar, se acomodar, tornar-se quase uma língua morta no estágio em que está na nossa geração? Por que a nossa geração seria superior às anteriores ou às que virão? Sim, a Lingüística não deixa de ser um soco no estômago do ego. Talvez, no meu íntimo, eu também gostaria de acreditar que domino o idioma perfeito, o melhor. Mas não é exatamente assim. Para quem se interessou pelo assunto, sugiro os livros de Marcos Bagno: A Norma Oculta; A Língua de Eulália, etc. Para começar.

Érika de Moraes, jornalista, mestre e doutoranda em Lingüística pelo Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp.

Artigo publicado no Jornal da Cidade (Bauru, SP) em 10/08/08:
http://www.jcnet.com.br/busca/busca_detalhe2007.php?codigo=110443

Comentários

  1. Comentários recebidos no antigo blog:

    [Manoel] [erikademoraes@hotmail.com]
    ENVIADO POR E-MAIL: Oi, Erika, Seu texto está muito "saboroso". Gostei muito. Abraço e parabéns, Manoel.
    Comentário enviado por e-mail.

    [Elaine] [nanedesousa@hotmail.com] [www.palavraimpressa.globolog.com.br]
    A língua é viva... ... pulsante! Como bem comenta o seu artigo. Tudo bem, Érika? Escrevo só para dizer que compartilho da opinião que expressou (e imprimiu! rs!) hoje no JC. Li a língua de Eulália, por sugestão da Érica Scadelai, há vários anos... Muito bom! Não sou nenhuma estudiosa do assunto (longe disso), mas adoro ler sobre lingüística e vivo alertando o pessoal daqui onde trabalho que não há certo e errado, apenas normas que nem sempre são seguidas... Como pontua o Teatro Mágico, "errado é aquele que fala correto e não vive o que diz"... Bom ter notícias suas! Abraços, Elaine
    21/02/2008 17:27
    Comentário enviado por e-mail.

    [Aline] [alinezero@uol.com.br]
    Parabéns, Érika! Gostei do artigo! Realmente lingüística é muito legal, até porque a língua é algo muito vivo, em constante transformação! bjs! Aline
    21/02/2008 09:07
    Comentário enviado por e-mail.

    [cubas] [carlos.cubas@gmail.com]
    "Oi Erika. Gostei do seu artigo e concordo plenamente com o "menas". Veja o meu caso, todos dizem que falo um dialeto, o cubanês. hahahahhaha Parabéns pelo artigo, muito bom."

    30/01/2008 07:22
    [Laurinha] [lalimaluka@msn.com]
    Querida Erika... Entrei no seu blog e comecei a ler... como preciso me preparar para a dança do ventre, mais tarde eu continuo a ler. Mas gostaria que você soubesse, que estou adorando o seu blog. Seus textos são simplesmente uma delícia de ler... é pessoinha que faz mágica com as palavras viu?? PARABENS LINDONA! Está tudo muito lindo............
    23/01/2008 17:36

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  2. Carlos Alberto (Jornalismo - USC)13 de outubro de 2010 às 16:18

    A meu ver, um grande texto que chama atenção para algo que se faz presente em nosso cotidiano. Falar sobre preconceito linguístico exige, sobretudo, adentrar esferas que vão além da linguística; é preciso relacionar a questão social, pois como pudemos acompanhar em seminários desenvolvidos pela turma da Prof. Erika, o preconceito não está naquilo que se fala mas em quem fala o quê! Um belo exemplo para ilustrar o que digo: as palavras "cravo" e "pranta" ”, a primeira entrou para a classe da norma-padrão (domínio das camadas sociais privilegiadas), e a segunda permanece na sombra do não-padrão, mas igualmente proferida na língua falada, porém, sob o domínio das classes menos privilegiadas. Pois bem, isto é uma pequena ponta do iceberg!


    *Parabéns pelo texto, Prof. Erika! É um grande prazer participar de vossos ensinamentos!

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  3. Érika,gostei muito desse artigo,estampa bem o que vivemos nos dias de hoje,nossa linguagem em constante tranformação....

    Ateh mais

    Fernanda Tayller(aluna de quinta-feira á noite)

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  4. Cada ser humano possui a sua linguagem, o seu modo de falar, de se expressar e, cabe a todos respeitá-lo, pois em virtude da língua estar em constante transformação torna-se muito vago fazer qualquer julgamento do certo ou do errado. Vale lembrar que, de acordo com Marcos Bagno, "(...) É infinitamente mais útil e relevante aprender a usar a língua e não aprender sobre a língua(...)."
    Maria Laura Maschietto Okazaki

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