Je suis Charlie?

Meu artigo publicado no Jornal da Cidade deste domingo.

Je suis Charlie?

Érika de Moraes

“Je suis Charlie” pode ter se tornado um slogan repetido sem reflexão. Sensibilizo-me pelas vidas que foram interrompidas, assim como me solidarizo com muitos muçulmanos que são estigmatizados por sua crença e associados a terroristas sem que o sejam. Notícias dão conta, inclusive, da morte de cidadão muçulmano, o policial Ahmed Merabet, entre as vítimas do ataque ao Charlie Hebdo. Sensibilizar-me pelas vidas não significa que, de uma hora para outra, eu possa me definir como um certo tipo de humor. 

Não me cabe julgar até que ponto tal humor é ou não desrespeitoso, só um amplo debate poderia iluminar esta questão e nada justificaria a retaliação com morte. O humor tem uma especificidade: a natureza de uma publicação humorística é diferente, por exemplo, das falas do ex-candidato Levy Fidelix, já que este ultraja a comunidade gay no espaço que, para ele, é o da “seriedade”. O fato mostra que o tema “liberdade de expressão” é mais complexo do que possa parecer a olho nu.

Complementarmente, é meu direito de cidadã decidir se sou ou não Charlie, sem que isto contradiga com o repúdio ao atentado terrorista. Os tempos atuais comumente fazem parecer que, se você não está de um lado, está necessariamente do outro, o que agrava o ensejo de eliminar aquele que pensa diferente. Nesse aspecto, acho válida uma das charges que circularam, a de Bernardo Erlich, segundo a qual “o mundo está tão sério que humor se tornou profissão de risco”. 

Freud, ao teorizar sobre o humor, percebeu que há uma relação inversa entre o riso e o desenvolvimento de afeto: quanto mais me identifico (e me solidarizo) com certo tema, menor é minha capacidade de rir dele. Existe, é claro, o chamado riso chapliniano, aquele em que se “ri de tristeza”. O estudo do clássico de Freud sobre o humor mostra que a dificuldade de rir de uma situação constrangedora, que para outros pode parecer muito engraçada, está relacionada à propensão em colocar-se no lugar de quem é alvo do riso. Se tenho essa habilidade de compreender o que o outro sente com uma charge que ofende sua crença, não terei o mesmo ímpeto de rir dela. 

Longe disso está defender que charges não devessem existir ou, ainda mais, que possam justificar o assassinato de pessoas. A questão é que os discursos já se confundem e trazem à tona o endurecimento, como na voz de Marine Le Pen, que pede a suspensão de Schengen, um dos símbolos do espírito democrático europeu. 

É importante refletir sobre se acreditamos realmente no slogan que repetimos. Ao pé da letra, não sou Charlie porque, pessoalmente, não sou o humor que praticam. Ao mesmo tempo, sou Elsa Cayat, para citar o nome da única mulher que morreu entre os profissionais da revista humorística. Sou apenas alguém que ama a língua francesa e também aprecia a dança árabe. E, mesmo amando o francês, as primeiras palavras que me vieram à mente no dia 7 de janeiro foram em inglês, as de John Lennon: “Imagine all the people...”. Que ocorra em paz a Marcha Republicana deste domingo, pois esta República já derramou muito sangue, a começar pelo da Rainha hoje venerada em museus franceses.

A autora é doutora em linguística e docente 
da Faac (Unesp, Bauru)

Link para a publicação:
Jornal da Cidade

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