Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo
Resenha (com licença poética)
Sinto o cheiro do tubo de metal do ônibus ao ler o livro,
embora este cheiro seja hoje quase apenas uma lembrança. Ninguém morre por andar de ônibus, mas minha cidade tem linhas ruins e eu andava em 8 por dia, lembrança amarga, porque me tomava
tempo de vida. Mas não é dos "meus" ônibus que vou falar.
É do trajeto de Pedro, personagem do livro Passageiro do
Fim do Dia, de Rubens Figueiredo. O trajeto, do centro à periferia, é longo,
muito longo. Tão longo que, entre congestionamentos, dúvidas e solavancos,
Pedro traça um filme de sua vida. A sua e a das outras personagens que cruzam
seu caminho, como a humilde e sonhadora namorada Rosane. São lembranças vindas
das leituras, dos desatinos, dos acidentes, dos conhecidos. Lembranças vividas ou
contadas que se misturam com divagações. O trajeto é longo, longo, sem fim. É
como o tempo de uma vida. Não serão mesmo tantas horas de vidas que se passam dentro de
um ônibus? Tempo que poderia ser de leitura confortável, sem o pular das
pupilas junto aos trancos das grandes rodas. Tempo que poderia ser de alongamento e
esporte, para um corpo mais saudável. Corpos espremidos e até violados em
horários de maior fluxo (vide o caso real da repórter do R7 no metrô de SP).
Ônibus.
A cada minuto livre do feriado, retornei ao ônibus. Não o
real, mas o da ficção de Rubens Figueiredo.
Conheci o autor carioca Rubens Figueiredo em uma palestra
dele aos estudantes de Jornalismo da Unesp de Bauru, isso há quase 20 anos.
Debatemos com ele O Livro dos Lobos, que muito me impressionara, em suas
fantasias que soavam tão reais. A visita do escritor me marcou. Hoje, sei de
forma mais consciente que, além de ter merecido alguns Jabutis, Rubens é
simplesmente “o cara”. Professor e um dos maiores tradutores brasileiros,
especialmente da literatura russa, ainda assim uma pessoa generosa, que se deu
ao trabalho, há quase vinte anos, de responder às cartas de uma estudante de
jornalismo, curiosa a respeito de sua literatura, inquieta, insatisfeita com o
término da palestra. Era tanto a apreender, a debater!
E era naquele meu tempo que o tempo era (ainda mais) escasso, uma boa
parte dele desperdiçada nos ônibus e a certeza de que eram eles o caminho para
o porvir. Mas não é sobre meus ônibus... – ah,
como não me lembrar agora do charmoso bondinho de Portugal ao pensar, hoje, em
transporte público? Como não resignificar, depois de tantas andanças?
O fato foi que tomei contato agora com o Passageiro do Fim
do Dia (publicado em 2010, vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2011),
de Rubens Figueiredo e li-o nos quatro dias de emenda do feriado de Corpus
Christ. Um leitor mais rápido (a exemplo de meu marido, quando tem vontade) teria lido em um dia e
meio, mas eu respiro entre palavras. A média dos leitores, acredito,
pode até ter certa preguiça: o livro não é dividido em capítulos, não se rende à
receita multimidiática da atualidade. É um longo trajeto de ônibus.
Pelo que li em entrevistas, Rubens acredita que a Literatura
deva ampliar nossa compreensão da realidade social, o que ele promove sem
dispensar a arte. Alguns defendem que literatura deva ser arte pela arte. Como faz
Rubens, é arte que ensina vida.
“Queria escrever um livro sobre a desigualdade social. Mas não
era um livro para mostrar a desigualdade social. Concebi o livro como uma forma
de conhecimento dos processos que geram, produzem, reproduzem, justificam,
legitimam e fazem esquecer a desigualdade. O que estava em jogo era a percepção
da desigualdade, a dificuldade que nós temos de perceber a desigualdade, a
força dos mecanismos sociais que levam a nossa consciência a assimilar a desigualdade
como algo dado, algo natural, que não é objeto de questionamento.”
Rubens Figueiredo, em entrevista para Univesp TV
PS: não por acaso, os escritos de Rubens Figueiredo retornam
à minha consciência neste momento em que acabo de lançar meu primeiro livro de contos. Quando me perguntaram sobre influências, lembrei-me instintivamente de
Clarice Lispector. Um pouco mais a fundo no inconsciente, encontrei Rubens como
uma das melhores memórias literárias.
Érika de Moraes
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