Do lar, da luta e da lua


O enunciado da revista Veja, causador de polêmicas e brincadeiras nas redes sociais, não teria tanta relevância se considerado isoladamente: exalta um tipo de mulher - a bela, recatada e do lar, esposa de um homem de sorte. A personalidade retratada na matéria merece todo o nosso respeito como ser humano, como todas as mulheres e homens o merecem, inclusive a esposa de um político ou a Presidente da República. Criticar o governo é um exercício democrático (poderíamos criticar suas bases, por exemplo, a aliança PT-PMDB); já ofender pessoalmente um governante, com xingamentos, é algo bem diferente.
Da mesma forma, ponderar o enunciado de Veja não significa desrespeito às mulheres belas (somos todas, em nossas lutas e biótipos), recatadas e do lar. Exercer uma profissão, aliás, não implica deixar de ter um papel fundamental no lar e, nesse aspecto, os maridos também são dos lares. Um dos dois, homem ou mulher, teria todo o direito de escolher exercer apenas uma das funções, mas os tempos são difíceis e, para a maioria de nós, esta possibilidade soa bastante irrealista. Hipoteticamente temos a escolha, porém, é do trabalho fora do lar que vem nossa renda, com os devidos impostos retidos na fonte. Assim, dividir a responsabilidade no sustento e no cuidado com o lar é mais do que uma opção para a maioria dos brasileiros, é uma necessidade.
A questão-chave, sobretudo, é inserir o enunciado em seu tempo, espaço e circunstâncias. Sabe-se que os direitos das mulheres são conquistas historicamente recentes. Sabe-se, também, que a referida revista tem um posicionamento ideológico claro (o que nem seria um problema), o qual busca referendar por meio das sutilezas da linguagem. A linguagem permite que se diga sem dizer, por meio dos implícitos, os quais podem ser reconstituídos com a inserção, nas análises, das condições históricas de produção dos enunciados.
Estabelecido o quadro, circulam fotografias de mulheres de todo o país, acompanhadas da hashtag #belarecatadaedolar. Do tema, já muito comentado, chamo a atenção para um efeito de sentido: de modo geral, a foto de bar tornou-se representativa da necessidade feminina de explicitar que pode ser o que quiser. Compreensível: a quebra de estereótipos exige rupturas drásticas que, ao menos temporariamente, constroem dualidades redutoras (algo em comum com Petralha X Coxinha). O ponto é: não seria outra forma (inconsciente) de dizer que ter liberdade é assumir certo papel, tipicamente associado ao mundo masculino?
A sociedade “aceitou” a mulher no mercado de trabalho (com as conhecidas restrições: salários mais baixos em média, menos mulheres em funções de liderança etc.), mas está longe de aceitar a sensibilidade (culturalmente associada à feminilidade). É como se eu precisasse dizer: “sou mulher, mas sou firme, não choro”. Avançado seria um mundo em que homens e mulheres se sentissem no pleno direito de chorar quando quisessem. Em que pudéssemos ser tão aceitos num dia de lágrimas quanto num dia de firmeza. Que não precisássemos negar o lar nem as lutas para nossa autoafirmação. E, licença poética, que pudéssemos apreciar a lua sem tantas preocupações.

Érika de Moraes é Doutora em Linguística, com ênfase em Análise do Discurso, pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Professora da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru.

***Artigo originalmente publicado no Estadão Noite de 25 de abril de 2016

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