O desenho e a leitura
O desenho e a leitura
Érika de Moraes
Em princípio, não vi os livros de colorir como algo ruim.
Ganhei de minha irmã o “Jardim Secreto” e achei não só desestressante, como
propõe a capa, mas até poético. Parecia que Papai Noel havia atendido ao meu
pedido de natal: eu pedira uma caixa de lápis de cor para pintar a vida.
Perceber que tais livros estavam se tornando um fenômeno de
massa trouxe a necessidade de uma reflexão a respeito da influência das
técnicas de marketing sobre o consumidor.
Se o livro “Jardim Secreto” traz desenhos autorais, assinados por uma
ilustradora que convida o público a neles interferir, logo vieram os genéricos.
Pintar ‘qualquer coisa’ se tornou antiestresse, segundo o marketing, mensagem
carregada de apelo comercial (e que se exime da análise sobre o porquê do tal
estresse generalizado).
Recentemente, matéria do UOL TAB questionou: o que diz sobre
nós o fato de que o livro mais vendido na atualidade é um livro de colorir para
adultos? Uma primeira resposta que vem à mente é uma necessidade de
desaceleração, de desligar o computador e, em vez de dividir-se entre quinze ou
mais abas abertas, concentrar-se em uma atividade, descansar os pensamentos.
Positivo, desde que não seja a única prática realizada em momentos de ócio
criativo (e a leitura, a leitura da palavra?).
A autora Johanna Basfard, de “Jardim Secreto” e “Floresta
Encantada”, concorda com a ideia de que os livros de pintura proporcionam um
descanso do mundo online, segundo afirmou ao “The New York Times” e reproduziu
o UOL TAB. Não parece, porém, do ponto de vista do marketing, ser um brinde à
concentração que os livros de colorir e/ou interativos estejam propondo, e sim
uma certa aproximação com a chamada linguagem digital, a única que, atualmente,
“merece a atenção humana”, conforme menciona criticamente a matéria do UOL TAB,
ainda no que se refere ao apelo de vendas.
É singelo que as crianças, nativas digitais, aprendam
intuitivamente a usar as plataformas touch, desde que tenham, também, a
capacidade de folhear livros de papel – pesquisas têm apontado até mesmo o
prejuízo da habilidade motora devido à supervalorização de games (e touchs) em
relação aos brinquedos concretos de montar (e aos livros tradicionais). Por
parte de muitos jovens, por sua vez, percebe-se um interessante movimento de
resgate da leitura dos clássicos, uma convivência saudável entre a valorização
da chamada linguagem multimidiática e a consciência de que o modo tradicional
de ler proporciona uma reflexão aprofundada sobre a realidade.
Há, ainda, uma outra faceta: o desenho e a pintura, como
arte, devem ser atividades tão valorizadas quanto a escrita ou a matemática.
Sou de um tempo em que a escola (ao menos a pública) não valorizava o artístico
e só quem tivesse recursos financeiros poderia praticar a dança, a música e
outras artes. Os prejuízos disso são irrecuperáveis. Contornáveis na vida
adulta, mas irrecobráveis em relação ao potencial que uma criança tem de
desenvolver habilidades.
Equilíbrio é a palavra. Pintar pode ser muito bom, sim, e
até antiestresse. Mas ler um bom livro é e sempre será uma ação recompensadora
do ponto de vista da aquisição de experiência.
A autora é jornalista, doutora em Linguística e docente da
Faac (Unesp, Bauru).
Publicado no Jornal da Cidade, Bauru: acesse o link
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