Hibisco Roxo e a magia da leitura
Silenciosa. Assim é a doce Kambili, nigeriana de 15 anos. O silêncio de quem não quer incomodar
a imperfeição do mundo ou, em outras palavras, não quer perturbar o mundo com
suas feridas e sussurros interiores. Kambili é de família rica (como assim, rico
tem sofrimento?).
Seu pai é benfeitor querido do povo, reconhecido omelora, Aquele que Faz pela Comunidade. Enquanto Papa fazia pela
comunidade, o avô, pai do Papa, andava desnutrido e de shorts puídos, já que não
merecia benfeitoria por ser “pagão”. Pagão ou tradicionalista, porque tudo
sempre tem ao menos dois lados e diversos matizes e, para tristeza de Deus,
crença cega sempre trouxe desavença. O Papa também batia na Mama – espancava,
na verdade, cenas que a narradora descreve de modo tão sutil que eu, leitora, quase
chego a pensar que minha interpretação está equivocada, que estou imaginando
demais. Será possível? De onde minha mente levanta essa cruel hipótese?
(Pausa
para reflexão. Havia lido uma reportagem em revista brasileira sobre mulheres
nigerianas que vinham ao Brasil para tratamento de fertilização, mesmo já tendo
filhos, porque não aumentar a prole significaria ser expulsa da casa rumo à
ardência do inferno. Essas e outras notícias trazem um pouco de contexto sobre
a sociedade narrada no livro, sua topografia.)
As
colegas de escola de Kambili acham que ela seja metida, pois quase não fala com
ninguém. Silenciosa. Se atrasar para chegar ao carro ou não for a primeira da
turma [sempre
achei chato e mal colocado esse negócio de “primeiro da turma”, é muito melhor
estar num grupo de estímulos recíprocos do que perder-se em vã competição de
ilusórios reis na barriga, mas deixemos esta elucubração para outro momento], as consequências
são... vejam no livro. Por trás, ou nos entremeios dos não ditos de Kambili, há
um turbilhão de palavras e sentimentos, há construções e reelaborações de
sentidos, há sonho e vigília. Poderia falar muito sobre a sutileza com que
Chimamanda tece o romance, poderia falar do primeiro amor platônico, delicado e
inocente em sua possibilidade impossível. E gostaria ainda de traçar
comentários sobre cada uma das personagens, a Mama, o irmão Jaja, a Tia Ifeoma,
professora universitária cujo olhar nos ajuda a contrabalancear os pontos de
vista.
“Você baixa a
voz quando fala. Você sussurra.”
(Amaka à
Kambili)
A função primordial da
vida
Deixando
as descobertas de enredo para o(a) leitor(a) – garanto que você vai adorar! – falarei
um pouco mais sobre a narradora. Narrar é assumir um ponto de vista. María Teresa
Andruetto, escritora argentina, diz: “escrever é um modo de olhar muito intenso”.
Da escrita, desponta um narrador, o olho na cena, a quem compete dar alma e
vida à ficção. “O olho de quem narra se detém no particular, porque a ficção é
o reino do detalhe”. E assim é que a ficção é a mais pura vida, pois literatura
é “o lugar do que é, não o do que deveria ser”. Por que ler literatura em vez
de um livro sobre a História e a Cultura da África, se quero entender outras
mentes? A razão é justamente percorrer outras mentes, coisa que só é possível
via arte da palavra, elaboração do signo, dança do significado no significante.
Às vezes eu me pergunto até que ponto teorizar não faria perder o bonde da
sensibilidade, é quando a literatura resgata.
Literatura
não tem uma função simples de ser traduzida porque tem a função mais primordial da vida: “é
a invenção de histórias o que nos permite abstrair-nos do mundo para dar-lhe um
sentido”, ainda citando Andruetto. (E a
cabeça já vai amarrando com Freud, Lacan, Jung e, mais recentemente, Hillman...)
Ler é tão importante quanto respirar. É tão triste ver
quanta gente sobrevive amarrada a um balão de falso oxigênio de vida,
acreditando no utilitarismo stricto sensu.
Não à toa, pesquisas demonstram que a Literatura está
diretamente relacionada à empatia. É mágico: eu não preciso ter a mesma
cor da pele de Kambili para me sentir tão ligada a ela nessa convivência de 320
páginas. É como uma amiga que passou um tempo importante em minha vida, mas ambas
seguiremos em frente por caminhos distintos, eternamente modificadas pelo
Encontro, sem jamais esquecer uma da outra.
Estou
absolutamente convencida de que a união por meio da Literatura construiria um
mundo melhor. Se ela traz empatia, o leitor ou leitora há de concordar que isso
está bem em falta no mundo. [O que eu mais temo é a voz de uma confissão: “está
mesmo faltando empatia, e isso é bom, certíssimo, cada um que se vire mesmo, os
mais fortes sobreviverão”.] Mas...
E
se alguém ainda desejar um mundo mais empático? E se esse alguém for você, e começar
tendo empatia pelo que aqui escrevo?
“Queria dizer às
meninas que meu cabelo era de verdade, que eu não usava extensões, mas as
palavras não saíam. (...) Queria conversar com elas, rir com elas, rir tanto
até começar a pular no mesmo lugar como elas faziam, mas meus lábios insistiram
em permanecer fechados. Como eu não quis gaguejar, comecei a tossir e corri
para o banheiro.” (Chimamanda dando voz à Kambili)
UM DESAFIO DE LEITURA – para quem tiver muque
Em
trabalho de sala de aula, alunas minhas apresentaram dados de uma pesquisa que
dizia que a média de leitura do brasileiro era muito pequena, dois vírgula um
pouquinho de livro por ano. Minha primeira reação: nossa, quanta gente lendo nada, já que os que leem uns 20 por ano estão
puxando a média para cima...
Percebemos
que, mesmo entre os universitários, o índice geral de leitura é baixo, excetuando
os textos teóricos obrigatórios – muitas vezes, lidos parcialmente e de modo
fragmentado. Eu também leio menos ficção e obras diversas do que gostaria,
diante da necessidade de muita leitura acadêmica. Fora o fator tempo, os olhos
não são de ferro. Mas... Desde o início deste ano, me propus um desafio: ler ao
menos 10 páginas por dia de algo “não obrigatório”. Preferencialmente, literatura
como a de Chimamanda, mas também valem aqueles das listas de mais vendidos,
afinal, é preciso conhecer para tomar posição.
10
páginas por dia representam um livro de 300 páginas por mês. Representam uma
média de no mínimo 12 livros por ano. E, se me pergunta, sim, caso não possa
ler 10 páginas em um dos dias, pode compensar com 20 no outro. Nessa brincadeira,
eu li 23 livros de janeiro a julho. Linguística não conta (no meu caso, por ser
obrigação profissional). O
prêmio é a leitura em si.
Claro
que seria bacana resenhar cada um dos livros (aliás, a escrita é relevante para
a autoelaboração da leitura), mas viver é priorizar. Ficam as anotações em
post-its. Les brouillons.
Se
quiser experimentar as 10 páginas por dia, garanto que será uma experiência
transformadora para muito melhor.
PS: Faz tempo que queria registrar essa resenha. Por sincronicidade, publico hoje, dia do Escritor.
Referências
ADICHIE,
Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. Tradução
Julia Romeu. 12 reimpr. SP: Companhia das Letras. [2003] 2019.
ANDRUETTO,
María Teresa. Por uma literatura sem
adjetivos. 4 reimp. Tradução de Carmem Cacciarro. SP: Pulo do Gato. [2009]
2017.
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