Língua, ideologia e empoderamento
O dia da Língua
Portuguesa (5/5) é uma oportunidade para refletirmos sobre o significado social
e político da linguagem em nossas vidas. Língua (não só a portuguesa) não se
resume a um conjunto de normas de padronização (embora tais normas tenham
funções importantes em termos de unidade e historicidade).
Dizer que a
língua não se resume às normas não implica negá-las ou minimizar a importância
de aprendê-las, mas mostrar que seu conceito é muito mais amplo. Tomemos como
exemplo o tema da aprovação, por deputados do estado de Alagoas, de lei que
obrigaria professores a manter “neutralidade” em sala de aula, impedindo-os de
“doutrinar” alunos em assuntos políticos, religiosos e ideológicos. Além da
inconstitucionalidade, que pode ser discutida em âmbito jurídico, tal lei parte
de um pressuposto equivocado, o de que existiria uma forma de linguagem desprovida
de ideologia.
Com o nome “Escola
Livre”, uma lei como essa, a rigor, imprime a censura nas salas de aula. Assim
como a censura durante a ditadura militar instituía-se de forma arbitrária, somente
por meio da arbitrariedade é possível decidir o que é ou não ideológico do
ponto de vista linguístico-discursivo. Para quem se alinha a uma ideologia mais
à direita, propostas voltadas ao social, à abertura de oportunidades mais
igualitárias são vistas como ideológicas, esquerdistas, assistencialistas. Já
para quem se identifica com ideias mais à esquerda, qualquer proposta que faça
lembrar argumentos da direita - um exemplo, a defesa da meritocracia - será
vista como equivocada e demonizada.
Ora, qual a
ideia certa? Qual a errada? Equivocado é acreditar que exista uma visão
ideológica, outra neutra. Errado, de um ponto de vista teórico-científico, é
supor que exista alguma maneira de interagir com a língua desprovida de
ideologia. Digo interagir (e não usar) porque a língua não é mera ferramenta, é
elemento constitutivo da identidade dos sujeitos. É por meio dela (seja qual
for o idioma) que o ser humano significa sua própria existência e o mundo ao
seu redor. É por isso que o domínio pleno da língua materna é empoderador. E,
provavelmente, é pela mesma razão que a valorização do ensino e do professor
seja tão precária em nosso país (é preciso vontade política de empoderar).
Num Estado
democrático e laico, os pensamentos religiosos e políticos devem ser livremente
debatidos e opiniões divergentes devem ser respeitadas. Acreditar, porém, que
existam argumentos neutros é pura falácia. A língua não é um instrumento
promotor de ideologia, ela é ideologia, é vida. E isso não é um mal, é uma
característica, da mesma natureza que o respirar. É redundante, portanto, dizer
que alguém se comunica ideologicamente por meio da língua.
Em celebração
ao dia da língua, tento mostrar que ela é assunto muito mais interessante - sério
e necessário - do que fazem parecer os simples lamentos de que a mal tratamos
com concordâncias equivocadas. Não defendo equívocos normativos - em cerca de
doze anos de ensino fundamental e médio, as escolas deveriam ter condições para
corrigi-los. Mais grave, porém, é essa visão deturpada do que seja linguagem, a
exemplo de como a veem os deputados de Alagoas. Infelizmente, eles não estão
sozinhos.
Érika de Moraes é Doutora em
Linguística, com ênfase em Análise do Discurso, pelo Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Professora da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru.
***Artigo originalmente
publicado no Estadão Noite de 3 de maio de 2016
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