Reinos desunidos
O resultado do
referendum inglês pela saída do Reino Unido da União Europeia – o chamado
Brexit – trouxe ao mundo a sensação de estar presenciando um daqueles momentos
históricos em que a linha do tempo irrompe em um marco. Em tais circunstâncias,
não é difícil esquecer que a história de fato é constituída nas peculiaridades
do dia a dia de cada cidadão.
Qual a
semelhança entre a experiência inglesa e a brasileira nas últimas eleições? Ambas
trazem à tona as benesses e as controvérsias da democracia: esta não é a
vontade de todos, mas de uma maioria. É questionado, porém, o próprio conceito
de maioria quando os resultados mostram sociedades divididas. Por um lado, a
democracia tem a sua legitimidade (e qual seria a alternativa a ela, se não a
de recair em regimes totalitaristas?), por outro, um resultado como o britânico
– 51,9 a 48,1% – representa um empate técnico. E, havendo empate, existe
realmente a vontade de uma maioria? Ou existem vontades opostas que convivem no
mesmo tempo e espaço?
O mapa da
votação britânica mostrou claramente uma divisão: Escócia optaria pela
permanência na União Europeia, enquanto Inglaterra e País de Gales escolhem a
saída do bloco. O governo escocês, então, já fala em um novo referendum pela
independência da Escócia em relação ao Reino Unido, seria a desunião provocando
mais desunião. Outra aparente divisão seria por faixa etária, conforme
expressam os jovens, especialmente pelo termômetro das mídias sociais, ao
lamentar que viverão o futuro escolhido primordialmente por uma população acima
dos 65 anos.
Modelos
existem. A Noruega, por exemplo, campeã no ranking de Índice de Desenvolvimento
Humano, não faz parte da União Europeia. Cidadãos europeus do bloco comum
usufruem da livre circulação e, simultaneamente, experimentam dificuldades
sociais como o desemprego e falhas nos serviços de saúde, além do fantasma do
terrorismo associado, justa e injustamente, às facilidades da imigração. Pode
ser, como dizem alguns analistas, que cidadãos do Reino Unido, ao vivenciar
problemas que afetavam diretamente sua qualidade de vida, optaram por uma via
diferente, sem saber se seria necessariamente melhor, e acordaram, de um dia
para o outro, com a questão assustadora: e agora?
Fato é que o
“golpe inglês” contra a União Europeia já representa uma ferida no mais belo – e
utópico – ideal pós-guerra, o de um mundo sem fronteiras. É, porém, mais fácil
desconstruir fronteiras físicas do que ideológicas. O que é união, se não
respeito e convivência com concepções e vontades distintas? O avesso da união é
a destruição do outro cujo pensamento é divergente. E, nesse viés, vale menos a
contagem de votos do que quem tem a arma de fogo mais potente. Valem menos as
vidas e a preservação da história, seja em Palmira, na Síria, em Paris ou numa
casa noturna de Orlando.
Nesse momento
(ou sempre?), há mais perguntas do que respostas. O que queremos para o mundo?
O que queremos para o Brasil? Quais medidas são necessárias para que não
prevaleçam decisões radicais? Como promover mudança sem radicalização? Em
tempos de desunião (ou será esta uma característica da humanidade e não de
nossos tempos?), é preciso muito cuidado com discursos radicalizadores baseados
em preconceitos. É fácil para alguém mal intencionado pregar o preconceito com
a falsa máscara do protecionismo de fronteiras físicas e ideológicas. Que seja
esta uma lição para o Brasil, se houver tempo.
Érika de Moraes é Doutora em
Linguística, com ênfase em Análise do Discurso, pelo Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Professora da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru.
Artigo publicado originalmente no Blog do Estadão em 27/06/2016.
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