O caso da contaminação de leites infantis por Salmonella


O caso da contaminação de leites infantis por Salmonella
- e o que pode nos ensinar -
Empresas privadas e Estado - Quem vigia os vigilantes?

O caso teve repercussão na França em 2017, não se limitando a este ano e país, já que a empresa envolvida é uma grande exportadora, inclusive para o Brasil.  
Naquele ano, inúmeros pais e mães deram entrada em hospitais infantis com seus bebês apresentando quadro grave de diarreia e vômito. Evacuando sangue, os bebês encontravam-se fracos e desidratados. Os primeiros diagnósticos não suspeitaram da Salmonella. Quando descoberta a presença da bactéria, a primeira suspeita recaía sobre a falta de higiene no manuseio da alimentação do bebê. Houve demora até ser detectado que o problema estava no leite em pó infantil (o único alimento que a criança então consumia!), vendido em farmácias e com receitas médicas, o que só agravava o quadro.
Os aspectos complexos desse caso foram tratados em várias reportagens e, recentemente, no documentário da TV5-Monde, Cellule de crise - Lait contaminé : au coeur de l'affaire Lactalis, com legenda em português. Até hoje não está inteiramente explicado.
Após a coincidência de casos, a conclusão foi de que alguns lotes de leite do Grupo Lactalis deveriam ser retirados de mercado. Outros bebês continuaram passando mal. Outros pais e mães continuaram entrando em contato com o atendimento ao consumidor, ouvindo a garantia de que o lote que tinham em mãos não estava com problema. E os bebês continuavam doentes, com risco de óbito.
Toda a produção da empresa em Craon estava comprometida, já que a bactéria havia sido encontrada nesta sede e as fórmulas infantis vendidas para 83 países, inclusive o Brasil (ver matéria da Folha de São Paulo, link abaixo).

Dúvidas, barreiras econômicas e comerciais
Segundo explica o documentário da TV5-Monde, em determinado momento, havia incerteza total sobre quantos lotes deveriam ser retirados de venda. Em princípio, a empresa fez um recall de produtos produzidos durante 15 dias. A reincidência de casos demonstrava que o período não era suficiente. O Estado demandou que o recall incluísse vários meses, já que os dados apontavam para quase um ano de contaminação (embora sua precisão fosse nebulosa) e, na dúvida, era a saúde e a vida de bebês que estavam em jogo. O tempo mostrou que o Estado estava certo, mas a questão não é tão simples: se estivesse errado, caberia ao setor público indenizar a empresa em milhões.

Mais do que buscar um “culpado evidente”, a necessidade vital de regulamentação
Houve algum tipo de fraude? Nada está provado. A empresa teve alguma intenção de contaminar seus produtos? Provavelmente, não. A principal hipótese é a de falhas nos processos de produção e fiscalização. A salmonella havia sido encontrada nas dependências da fábrica, mas não no produto em si, o leite em pó, segundo análises do laboratório privado contratado pela empresa para emitir seu laudo de controle de qualidade. O laboratório errou? Também não é tão simples: uma das explicações pode estar na amostragem. Houve falhas na qualidade de produção? Uma das hipóteses está relacionada à redução de quadro de funcionários.
O fato é que o Estado precisou intervir e, na análise feita por laboratório público francês, a bactéria foi encontrada no leite em pó. Posteriormente, o laboratório privado também refez a análise e encontrou a bactéria.
Como é feita a fiscalização? O Estado tem acesso aos laudos emitidos pela própria empresa, que tem o direito de se “autorregular” e só interfere em caso de necessidade.
Detectado o problema, percebeu-se a falta de um protocolo definido sobre como agir, quanto à agilidade de retirar os produtos de venda, como orientar os pais que ligavam no atendimento ao cliente ao se encontrarem na seguinte situação: fim de semana, farmácias fechadas, sem receita médica para substituir o produto, o que fazer com a próxima mamadeira? Posteriormente, especialistas afirmaram que a simples orientação de ferver o leite resolveria o problema.
As dificuldades (jogos de interesses?) provocaram efeito em cadeia, como a falta de alinhamento entre os ministérios da Agricultura, Saúde e Economia e a manutenção, em supermercados, de produtos sinalizados em lotes de recall. A justificativa para esse último fato seria de falhas na redistribuição de produtos devolvidos, mostrando que não havia um sistema de controle eficiente. Tudo isso acontecendo na França – sempre acredito que os “problemas dos outros” são válidos para avaliarmos com distanciamento e refletirmos sobre os nossos. E, no fim das contas, se somos todos humanos, não somos “outros”.
O imbróglio é ainda maior do que pude aqui resumir. A mesma bactéria está relacionada à mesma fábrica em casos do ano 2005, podendo significar que sua presença nunca deixou de existir por 13 anos, apenas foi menos evidente.
A Lactalis voltou a comercializar leite infantil, agora com o nome Célia.

Quem fiscaliza quem
No Brasil, ganha força a ideia de que tudo que pertence ao Estado é um antro de perdição. Não vou julgar o brasileiro traumatizado com escândalos como o caso Petrobras. No exercício de analista de discurso, limito-me aqui a apontar o perigo da conclusão oposta: o de que tudo que é privado é puro, limpinho. Que o setor privado é sempre competente em autorregular-se, que este não precisa de fiscalização. A polarização é muito perigosa, pois faz parecer que há vilões de um lado, santos de outro (quem ocupa cada papel vai depender de cada grupo), apagando-se as complexidades de que todos os setores e pessoas estão sujeitos a falhas, não necessariamente propositais.
No impasse de dúvidas entre atuação do setor privado e do público, havia bebês evacuando sangue, contaminados por seu próprio alimento, enfraquecidos e sem voz para dizer o que sentiam. Seres humanos pequenos demais para perder tanto sangue, com suas vidas infantis em risco.
A sociedade precisa manter-se em alerta. Seria muito cômodo poder acreditar numa figura paterna cuidando de todos nós (o Pai-Empresário ou o Pai-Estado), mas mesmo os pais estão sujeitos a equívocos (pensem nesses pais e mães, inocentemente, nutrindo seus próprios bebês com leite contaminado). É necessária uma rede de regulamentação em que sociedade, empresas e Estado sejam mutuamente reguladores um dos outros. Muito fácil acreditar que uma única instância seja capaz de autorregular-se, mas insuficiente. É preciso haver agências reguladoras com independência para exercer seus papéis.
Sem romantizar quaisquer dos atores, cabe dizer que é função essencial do Estado zelar por direitos fundamentais do ser humano, sobretudo o direito à vida e às necessidades básicas como saúde e educação. Eis um ponto pertinente para elucidar uma questão não bem explicada à sociedade: ao contrário de ser privilégio, a estabilidade de agentes empregados em setores públicos é correlata à independência de sua atuação.
Recomendo fortemente o documentário da TV5 Monde para, a partir desse caso sério e real, extrapolar para outros temas e refletir sobre a construção de uma sociedade mais segura e em prol da vida.

PS: Minha atuação é com linguagem e discurso. Se pudesse escolher, ficaria sempre do lado poético da linguagem, mas não posso me isentar do fato de que discurso envolve sociedade, política, economia.

PARA SABER MAIS:
TV5 - Monde
DOCUMENTAIRE - Cellule de crise
Lait contaminé : au coeur de l'affaire Lactalis
Duração : 90 minutos
Folha de São Paulo:
França investiga dona da Batavo por Salmonella em produto para bebê

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