D. Pedro I


Nasceu num 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Padroeira do Brasil. Mas nasceu do lado de lá do Atlântico, vindo para cá bem cedo, com a sua corte fugida de Napoleão. Chegou ao Brasil em 1808, aos 9 anos de idade. Desse modo, cresceu sentindo-se bem brasileiro, porém, tal qual o país, possuía raízes a um oceano de distância.

A divisão de seu ser permanece após a própria morte, já que seus restos mortais vieram para o Brasil em 1972 e, desde então, repousam no Mausoléu do Ipiranga, em São Paulo. O coração, porém, ficou para trás - imagem insólita não mais liberada para os curiosos, que me faz lembrar Piratas do Caribe. O coração ficou no Porto. E quem não teria amado o Porto se tivesse lutado por toda a beleza ao redor do Douro, e ainda ao lado de uma brava gente (sim, do lado de lá também tem brava gente)? Ele foi herói no Porto.

E foi herói no Brasil. Não fez sozinho a Independência, mas se imortalizou pelo grito do Ipiranga em 1822, quando só tinha 23 anos. Talvez a pouca idade possa, se não perdoar, justificar boa parte de seus erros. Era jovem demais para ser tão líder, e já era bem homem. Cuidou de quase tudo pessoalmente. Certa vez, levou a balança real para conferir se os comerciantes brasileiros estavam enganando o povo com falsos pesos e medidas, mandou punir os desonestos. Ferrou o próprio cavalo porque o ferreiro fazia mal o serviço (pelo que ofendeu o ferreiro).

No Brasil recém-independente, com os tesouros raspados pela parte regressante da coroa portuguesa (entenda-se, o pai de Pedro), precisou de dinheiro para o país e reduziu o próprio salário. Quando precisou de recursos para a guerra que libertaria Portugal do tirano D. Miguel (seu próprio irmão) e não encontrou respaldo internacional, usou das próprias “economias”, que até eram consideráveis, mas bem menos do que condizentes para o patrimônio de um monarca. Foi soldado e chefe em campos de batalhas, arriscou-se mais do que deveria. Criou leis modernas para seu tempo, mas também agiu com conservadorismos. Não à toa, despertou ódios e paixões.

Ao proclamar a independência brasileira, foi amado pelos brasileiros e tido como traidor pelos portugueses. A situação foi se invertendo, à medida que, por um misto de necessidade e empatia familiar, sobretudo pelas circunstâncias e por seu coração dividido, ia concedendo mais benefícios ao lado de lá.

Após a necessária abdicação ao trono brasileiro, em 1831 (quando deixou aqui o seu pequeno filho, que viria a ser D. Pedro II), triunfou em Portugal ao recuperar para a filha Maria II o trono extorquido por D. Miguel. Mesmo após sua morte, seu reino permaneceria um duplo, um lado na mão de um filho, Pedro; outro na mão de uma filha, Maria.

Em vida, leu os clássicos da época , embora muitos não o considerem tão culto para um soberano, e amou a música, tendo composto a melodia do Hino da Independência (Brava gente brasileira...). Acordava muito cedo e dormia tarde - ou não dormia: traía; era devoto de Nossa Senhora, alimentava-se rápido, cavalgava muito bem. Ao contrário de outros membros da família real, gostava de tomar banho. Teve muitos filhos, legítimos e ilegítimos. Gostava de noitadas e teve má reputação.

Morreu cedo, aos 35 anos, na mesma cama onde, em 1798, sua mãe Carlota Joaquina o havia dado à luz. Morreu tuberculoso, enfraquecido por guerras e maus hábitos.

Politicamente, é repudiado e admirado, a depender das convicções de quem o avalia. Não foi santo nem diabo. Pagou pecados em vida, com a epilepsia (a única que abatia seu “espírito indomável”) e as doenças venéreas (estas bem merecidas).

Eu me apaixonaria por ele como personagem (se é que não me apaixonei), mas eu o odeio, detesto-o com toda a força de minha alma. Eu o odeio não tanto por ele ter tido tantas mulheres (o que não avalizo, mas “entendo” para os padrões da época). Eu o odeio pela forma como tratou a primeira mulher, Leopoldina.

Leopoldina. Princesa austríaca muito culta e repleta de virtudes, trazida para o Brasil em 1817, para encontrar o jovem marido Pedro com quem já se casara por procuração. Escolhida a dedo, nascida “no berço mais dourado da época”, filha de herdeiro do antigo Sacro Império Romano. Como a maioria das princesas, não pôde escolher seu destino. Como a maioria das princesas, sonhou em fazer daquele que lhe foi destinado o seu príncipe encantado. Ao contrário da sogra Carlota Joaquina, amou demais seu marido, só tendo desistido desse amor quando não havia mesmo mais jeito e já havia sido humilhada de todas as formas possíveis. Além de ter tido várias amantes, D. Pedro impôs à Leopoldina a presença da Marquesa de Santos como sua própria dama de companhia. Não está comprovado, mas há evidências de que teria chutado a barriga da mulher grávida, antecipando a morte daquela que já estava debilitada pela depressão e pela ausência de um amor sonhado.

Poderia parecer que foram apenas um casal formal, sem qualquer esperança de amor, numa época em que não havia direito de escolha. Mas puderam se conhecer e construir amizade. Li que, juntos, gostavam de caçar borboletas – e isso não é até mais do que a conexão de muitos casais da atualidade?

A amante Marquesa de Santos foi a paixão descarada e a ruína de D. Pedro. O povo do Brasil Imperial amou e chorou por Leopoldina, fato que também contribuiu para o desgaste da imagem do soberano. Este ainda teve uma segunda esposa legítima, Amélia, que parece ter sido bela e amorosa, “mulher de verdade”. Suponho, sem poder ter certeza, que ele a tratou um pouco melhor, quiçá por remorso por Leopoldina.

Amo D. Pedro em suas contradições, um amor que é fogo e arde sem se ver. Odeio o homem desumano que foi, odeio-o por Leopoldina. Mas, quem sabe, pelo prisma da religiosidade herdada de nossas raízes portuguesas, não se possa imaginar um D. Pedro que, nos céus, reencontrou Leopoldina e por ela foi perdoado, reencontrou seus filhos, glórios e inglórios, e pôde beijá-los um a um, abençoá-los como sempre parece ter tentado durante a curta e intensa vida. E se todos eles o perdoarem, se Leopoldina o perdoar, quem sou eu para odiá-lo?

De minha parte, absolvo-o através deste texto, e absolvo-me de um ódio histórico em nome das mulheres destratadas.

D. Pedro I, te odiei tanto que já posso te amar. Eu o perdoei depois que vi teu leito de vida e de morte. Eu entendi teu coração dividido. Só gostaria, também, de saber se um dia você entendeu Leopoldina.

Érika de Moraes


Cama em que nasceu e morreu D. Pedro I, no Palácio de Queluz, em Portugal

Palácio de Queluz visto dos jardins - inspirados em Versalhes



Por esses labirintos, brincaram príncipes e princesas

Queluz, o mais perto que cheguei de D. Pedro I. Ou terão sido as margens do Douro? Do Ipiranga? Ou cada pedaço do Brasil?

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Camões

Texto de Érika de Moraes, embasado nas leituras de 1808 e 1822, de Laurentino Gomes. Livros super recomendados!
Fotos: arquivo pessoal de Érika & Ronaldo

Comentários

  1. Muito bom texto. Como não amá-lo nem odiá-lo. Homem de muitas mulheres e muitos amores.
    Um brasileiro, sem sombra de dúvida!!!!

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    1. É isso, Elisa... tão humano, tão intenso... Obrigada pela visita ao blog! Abraços.

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  2. Seu texto me fez ir a Portugal e retornar ao Brasil. De fato, palavras muito bem escolhidas, texto intensa e com ótima qualidade. Parabéns, professora.

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    1. Obrigada, querida Luana. Fico muito feliz quando alunos e ex-alunos passam por aqui. Bjs.

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