Intuição

Poderia escrever um texto sobre as qualidades femininas para exaltar a mulher, falar da beleza, da leveza, da maternidade, do sexto sentido. Ou poderia redigir um protesto, demonstrando a indignação por saber que, ainda hoje, em certos meios, a violência física contra a mulher é fato tão corriqueiro*. Mas vou aproveitar esse Dia Internacional da Mulher para dizer algo sobre um outro tipo de violência, mais sutil, a tirania do estereótipo.

Mulheres são doces e frágeis. Mulheres são pouco práticas, mas versáteis. Mulheres sonham com o Príncipe Encantado. Mulheres não têm boa noção de espaço, portanto, dirigem mal. São exageradas, angustiadas e neuróticas. Nasceram para ser mães. Fazem tempestades em copo d’água. Nem verdades, nem mentiras: estereótipos que, de tão repetidos, circunscreveram-se historicamente. Estereótipos poderosos e, às vezes, difíceis de desafiar. Tão bem mostrados nas charges de Maitena.

Bourdieu, no livro “A Dominação Masculina”, lembra que a distinção biológica entre os sexos é vista como penhor e “justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho” (p. 20). É sempre fácil alguém argumentar a respeito das limitações da mulher com base nas diferenças biológicas dos corpos. E é fácil, também, esquecer que não foram as diferenças que construíram as desigualdades, mas estas – as desigualdades – é que foram historicamente justificadas pelas diferenças.

De todos os conceitos sobre a mulher, um que sempre considerei dos mais intrigantes é o da intuição feminina, também conhecida como sexto sentido ou associada à sensibilidade da mulher. Ao mesmo tempo em que instiga, causa um misto de orgulho sentir-se um ser iluminado, dotado de um certo encanto, uma certa magia inexplicável. Perguntei-me, diversas vezes, onde estaria a raiz histórica da construção da idéia da intuição feminina, qual a explicação que não se restrinja ao inexplicável. Encontrei um caminho para uma resposta em Simone de Beauvoir. No livro “O Segundo Sexo”, Beauvoir argumenta que a maior sensibilidade da mulher e sua percepção de sentimentos não advêm de uma determinação fisiológica, mas de uma construção cultural, já que, historicamente, num passado muito recente, enquanto o homem saía para trabalhar (ou para conquistar, etc.), ela ficava em casa e só lhe restava refletir sobre sua atual ou futura vida de esposa e mãe.

Ela [a mulher] tem uma preocupação extremada por tudo o que ocorre dentro dela; é desde o início muito mais opaca a seus próprios olhos, mais profundamente assaltada pelo mistério perturbador da vida do que o homem. (Beauvoir, p. 20)

Como fica claro, não se trata de negar que a tal “sensibilidade feminina” – que, como contrapartida, provocaria também angústias e instabilidades de humor – não possa existir de fato, mas não se trata (ao menos não integralmente) de um dado biológico e, sim, de uma característica que foi incentivada, estimulada pelas circunstâncias histórico-culturais:

A famosa “sensibilidade feminina” participa um pouco do mito, um pouco da comédia; mas o fato é, também, que a mulher se mostra mais atenta do que o homem a si mesma e ao mundo. (Beauvoir, p. 390)

Não quero ser a desmancha-prazeres que arranca do imaginário feminino a glória vitoriosa da intuição. Orgulhemo-nos dela. Presente divino, genético ou construção histórica, seja como for entendida, a temos. Quero, ao contrário, expressar a esperança. Se a intuição (ou a sensibilidade) pode ser aprendida, desenvolvida, quem quiser pode se beneficiar dela (mulheres ou homens). Da mesma forma, também podem ser aprendidas outras características como uma visão mais prática de mundo, útil em diversas situações. Enfim, pode-se desenvolver o discernimento de aproveitar o que há de melhor em cada circunstância. Mulheres e homens podem ser diferentes e complementares, sem deixar de aprender um com o outro.

Não quero destruir a idéia da intuição (ou quero e reluto? Num sentido específico, unicamente mágico, quero). Apenas defender que ela tem origem cultural (ao menos parcialmente, mas diria que em grande medida). Não é pura magia. Porque, como diz Beauvoir, “A idéia de magia é a de uma força passiva” (p. 78). PASSIVA!!! Percebam, então, queridas, o jogo que está por trás da associação da feminilidade ao universo encantado. Se entendermos que somos “culturalmente intuitivas”, nossos méritos se fortalecem, nos compreendemos mais ativas. Mais mulheres, mais pessoas.

Adoro ser mulher. Por isso, amo; por isso, danço. Por isso, estudo os efeitos dos discursos sobre a mulher.

Postado no meu blog do UOL em: 08/03/08

Comentários

  1. Comentários recebidos:

    Querida profesora, a Shisha indicou seu blog para RRPP 2003 e quero matá-la por não nos ter indicado esta preciosidade antes!!! Parabéns pelos textos...Tenho certeza que me tornarão uma pessoa melhor!!! Beijos
    Talitinha | talitinhaperes@uol.com.br | 18/03/2008 20:43

    Adorei o texto,Érika! Concordo plenamente.. e digo mais: a intuição é tão cultural, e está tão enraizada no imaginário da mulher, que ela só direciona esta para aquilo que lhe interessa..e não para tudo que realmente a cerca. Mas é isso que somos né? Um misto do que nos é biológico, cultural, psicológico.. unimos os diversos discursos que nos cercam e construimos o nosso próprio! bjos!
    Sue Ellen | sueellen.cruz@gmail.com | sueellencruz.blogspot.com | 14/03/2008 22:15

    Ana Coli] [anacoli@yahoo.com]
    Adorei, Érika! Bjo.
    10/03/2008 11:34

    [Érica] [e_franzon@hotmail.com] [http://eunaousorelogio.blogspot.com/]
    Oie! Amei seu texto e todo o sentido do que está nele. Parabéns!!! Bjão cheio de saudade!
    10/03/2008 11:33

    [Mariana] [magasri@hotmail.com]
    Humm nunca tinha pensado sobre a questão da intuição feminina ser cultural... agora estou encucada rs; por isso que adoro seus textos! Bjos
    10/03/2008 10:40

    [mileni] [milenikg@gmail.com]
    Erika, não páre nunca... bjos.
    10/03/2008 08:53

    [Dalila] [dalila.moraes@gmail.com]
    Oi tata :) Apesar da correria do dia dia... mestrado e banco... banco e mestrado... eu sempre venho aqui dar uma espiadinha!!! E sempre adoro os seus textos... e adoro mais ainda ver que tem uma foto que eu tirei!!!! :) Me senti super importante!!! E também sempre que leio um texto novo da tata, mato um pouquinho da saudades que sinto... Seu Blog é maravilhoso!!! Beijos
    09/03/2008 22:12

    [Jô] [jo@bignet.com.br]
    Érica querida: adorei o texto, o blog,tudo. Em off: tb sou tiete do J. Depp. Bjos, Jô.
    09/03/2008 16:15

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